27.9.07

 

O Idioma Luso-Brasileiro


A recepção de uma mensagem informativa oriunda do Brasil, sobre o destino a dar ao óleo de cozinha usado, que achei útil, desencadeou-me esta pequena reflexão que, porventura com excessiva ingenuidade da minha parte, atribuí a hipotética inspiração luso-brasileira, fenómeno raro, hoje em dia, sobretudo quando imaginado como nascido naquelas paragens tropicais, que já foram o nosso colectivo maravilhamento em épocas mais recuadas.

Como nota particular, curiosa, registei, naturalmente com agrado, que a informação brasileira quase não trazia erros de português, apenas algumas pequenas falhas na concordância das frases e na coerência dos tratamentos dos destinatários, coisas de pouca monta, explicáveis a partir de alguma desatenção com a sintaxe, que, lembre-se, ainda não é facultativa, apesar de todas as tolerâncias escolares concedidas pelos diversos Ministérios da Educação que, pelo menos por cá, nos têm democraticamente sido servidos.

Os Brasileiros, pese a sua enorme criatividade, ainda declaram, oficialmente, que a sua Língua é a Portuguesa, escrita numa ortografia ligeiramente divergente da nossa, por incumprimento do Acordo de 1945, que assinaram, mas depois não homologaram, por questiúnculas infindáveis levantadas por contumazes recalcitrantes, sempre apostados em reavivar certo passivo histórico de amarga memória para a antiga nação colonizadora.

A essa declaração, todavia, convém sublinhar, devem os Brasileiros certas obrigações : uma delas é a de observarem as regras gramaticais da Língua em vigor e não procederem como se elas não existissem ou fossem meramente facultativas. De resto, tal mentalidade começa a insinuar-se também em Portugal, contando já com inúmeros seguidores.

Dada a existente desproporção populacional entre os dois países, que a retórica oficial costumava denominar irmãos, a corrupção linguística em curso, avançará, por lá, previsivelmente, muito mais rapidamente do que por cá, potenciada pela degradada situação do Ensino, em ambos os países, lá, porventura, mais agravada, por efeito da proverbial capacidade amplificadora da natureza nos trópicos.

Nestas circunstâncias, a alteração da norma linguística não poderá senão acelerar-se, infelizmente, acentuando a sua actual tendência degenerativa, levando a que, muito mais cedo do que aconteceu com o Latim, do Português venha, finalmente, a nascer o Brasileiro, velho desiderato dos irredutíveis anti-lusitanistas do outro lado do Atlântico; analogamente, por aqui, se esta tendência de grande incúria linguística continuar, há-de também «florescer» um novo idioma ou dialecto, que, podemos ver, já aflora nos presentes «bués, bués da fixe, nos iá, meu !, nos tipo isto, tipo aquilo, nas cenas bué da, nos vamos bazar…, nas curtes…, etc., etc.», por enquanto, com maior incidência no vocabulário do que na sintaxe da Língua, com excepção das frase do tipo «Esta cena é bué da fixe, meu ! » e quejandas, em que a dita sintaxe surge já bastante deformada, até agora com a aparente despreocupação geral de Pais, Professores e demais Educadores da nossa frenética Comunidade.

Verifica-se, por conseguinte, neste específico ponto, concertada ou desconcertadamente, alguma convergência luso-brasileira, embora, para nosso mal comum, num sentido comprovadamente nocivo, como seja o da degradação da Língua, que ambos os Povos herdaram dos seus comuns antepassados e que tanto carinho e desvelo chegou a merecer dos seus mais ilustres escritores, como Camões, Euclides da Cunha, Eça, Machado de Assis, etc., para citar só alguns dos antigos, talvez, ainda hoje, dos mais conhecidos nas duas orlas do Oceano.

Ouso assim dizer que, se não ocorrer forte contenção neste perigoso caminho, degradante em múltiplos sentidos, iremos certamente assistir, lá e cá, à alegre multiplicação de linguagens variantes, verdadeiros dialectos degradados do actual idioma, sendo que alguns deles, com toda a probabilidade, se tornarão grandemente indecifráveis para a maioria dos falantes que persistirem em praticar e em honrar o velho idioma português, transportado no bojo das naus quinhentistas até às distantes plagas do vasto novo mundo, postas por fim em contacto com o antigo, pelos bravos nautas lusitanos que daqui zarparam em sua demanda.

Dada a fecundidade do tema e a sua permanente actualidade, a ele voltarei por certo muito em breve, armado da necessária bonomia de espírito, condição, cada vez mais, absolutamente indispensável para se poder encarar a sua agreste realidade.

AV_Lisboa, 27 de Setembro de 2007

18.9.07

 

Fracasso Insofismável


A RTP 1 transmite, neste momento, pela enésima vez, um programa de debate sobre o Ensino em Portugal, no seu exíguo espaço de programação subtraído ao império das telenovelas, concursos idiotas, coscuvilhices baratas e filmes americanos de cariz estupidificante ou embrutecedor.

Deveríamos já ter vergonha de tanta conversa fiada acumulada, sistematicamente desmentida pelos factos mais correntes, triviais. Se há sector da vida nacional, suponho que o adjectivo ainda seja tolerado pelos mandatários da globalização, em que o fracasso se tornou completamente iniludível, é ele o da Educação.

Nenhum Salazar, nenhum Bush, nenhum Iraque ou outro qualquer monstro interno ou externo, real ou imaginário, consegue continuar a mascarar a nossa geral incompetência, o nosso indesculpável desleixo, concretizado neste insofismável fracasso colectivo.

Depois de termos reduzido os dois primeiros graus do Ensino, o Primário e o Secundário, a um irrelevante regime de depósito, entretenimento e atrofiamento de jovens inocentes, logo passámos à degradação do Ensino Superior, multiplicando Cursos e graus académicos, sem justificação, nem credibilidade.

Paulatina mas persistentemente, Escolas, Colégios, Institutos e Universidades, algumas até Independentes, todos criados, fundamentalmente para atrair alunos, na base da concessão do Diploma, exigindo pouco ou nenhum esforço intelectual, sequer físico, alguns mesmo dispensando os alunos de para lá se deslocarem, permitindo a realização de provas por faxe ou via Internet, foram-se encarregando de «democratizar» o Ensino, tornando o acesso ao Diploma quase um expediente, mera banalidade rotineira, de sucesso garantido.

Turbas de Pedagogos encartados produziram durante decénios toda a sorte de reformas nos programas e currículos escolares, com os costumados nulos efeitos, mas sempre elogiados pelos mesmos Pedagogos ou pelos seus patrocinadores hierárquicos políticos.

A pretexto de se combater a velha Primária «salazarista, autoritária e obscurantista», produziu-se um Sistema de Ensino Elementar de conteúdo praticamente nulo, em que as crianças não aprendem a ler, nem a fazer contas, muito menos a escrever, a conhecer a Geografia ou a História do seu País.

E do resto também pouco aproveitam. De Ciências Naturais, apenas aprendem sumaríssimas noções de Ecologia ou de Meio-Ambiente, porventura na esperança de que se tornem, em adultos, ruidosos militantes das causas da Natureza, nem que para isso hajam de obstruir planos de vultuosos investimentos em energias renováveis, como aconteceu com o absurdo abandono do Projecto de fins múltiplos de Foz-Côa, para sumo gáudio de provados demagogos, erigidos em políticos esclarecidos, alegadamente motivados pela defesa do «Património e da Cultura da Humanidade».

Sem noções de disciplina nem de respeito, os miúdos vão progredindo, desde a Primária, na escala de um saber ignorante. No Secundário, prolongam a progressão, no meio do completo vazio cultural em que mergulham, começando regularmente por odiar a Matemática, matéria sobre todas reputada de pouco ou nada democrática, que não se presta a debates, nem aceita a recomendada igualdade das abordagens.

Da Física e da Química tampouco ganham gosto, porque igualmente as acham pejadas de fórmulas rígidas e, no fundo, do mesmo modo requerendo a utilização de alguma Matemática, o que chega a parecer-lhes conspiração.

Restam, então, as «disciplinas moles», as do excitante paleio ou da construtiva argumentação, em linguagem evoluída, do agrado das mentes irrequietas, mas pouco rigorosas.

Porém, mesmo estas disciplinas, aparentemente mais acessíveis, acabam por tornar-se desinteressantes, porque, afinal, também elas, fatalmente, não dispensam o cumprimento de certas regras, o respeito da gramática, da ortografia, etc., tudo isso obviamente configurando uma insuportável chatice repressiva, dir-se-ia apostada em matar no ovo a exuberante criatividade dos alunos.

Ainda assim, muitos deles conseguem furar grelhas e atravessar funis, assomando ao Eldorado da Universidade, em cata do subido Canudo, que há-de libertá-los da temida condenação laboral futura, precária e mal paga, cada vez mais ameaçadora de classes e de profissões antes pouco atingidas desse horrível flagelo.

Quem há-de, pois, salvar os Portugueses deste quadro trágico e fúnebre, que, levianamente, inconscientemente, vem sendo criado por supostos dirigentes, inelutavelmente investidos da apregoada legitimidade democrática ?

Quosque tandem…

AV_Lisboa, 17 de Setembro de 2007

16.9.07

 

Esclarecendo o Sentido da Citação de Voltaire

Agradeço a atenção que os três comentadores dedicaram ao assunto tocado no meu anterior apontamento e aproveito para deixar um pequeno esclarecimento.

A figura de Voltaire, como muitas outras na História, tem o seu lado luminoso e outro mais obscurecido. Era Voltaire, como sabemos, bastante contraditório, na sua irreverente atitude perante as autoridades, a qual não casava com a cortesia com que convivia com Reis absolutos – Luís XV e Frederico II da Prússia – com vocação de déspotas, por muito que saudassem os ideais iluministas da razão e da dignidade humana. Como escritor – original, inventivo e reflexivo – talvez tenha atingido a sua maior dimensão.

Claro que, apesar do fundo de parentesco das mensagens comentadas no texto, não o coloco no mesmo plano espiritual em que os Nazis se situavam, porque estes, na sua loucura ideológica, saíram mesmo do plano racional.

Apenas referi que, mais de sessenta anos depois do fim da 2ª GMundial, nunca vi ninguém das ditas Esquerdas políticas estabelecer alguma relação, ainda que remota entre aquelas duas referidas mensagens.

Para estas famílias ideológicas bem-pensantes, Voltaire pertence ao Olimpo dos ícones impolutos da Humanidade, enquanto os Nazis fariam parte de uma raça vil, malfazeja da mesma Humanidade.

Ora a verdade é que os Nazis emergiram do seio de uma das sociedades mais evoluídas do Mundo de então, carregada de ciência e de alta cultura, facto que nos deveria pôr de sobreaviso quanto à nossa sossegada normalidade.

Em períodos de convulsão extrema, qualquer sociedade pode resvalar para o plano da anormalidade, do ódio, que gera todas as guerras e fomenta todos os horrores.

Nunca nenhuma sociedade se encontra ao abrigo de embarcar em qualquer aventura ideológica capaz de a conduzir ao descalabro da guerra e da desumanidade, como aconteceu na Alemanha da primeira metade do século XX. Confesso que me agrada a filosofia de vida que subjaz neste conto de Voltaire : que cada um procure pelo trabalho fazer algo de útil para si próprio e, ainda melhor, se também o for para os seus concidadãos.

Talvez nisto se traduza o sensato conselho de Voltaire sobre a necessidade de cada qual cultivar o seu próprio jardim.

AV_Lisboa, 16 de Setembro de 2007

10.9.07

 

O Trabalho como Remédio


Num tempo em que tanto se fala do trabalho, no que ele tem de motivador, de realização pessoal, de garante da subsistência, de agenciador de prazer ou de enfado, lembrei-me de revisitar este pequeno troço do final do famoso conto filosófico de Voltaire, Cândido.

Nele sublinhei as passagens mais frequentemente citadas por comentadores e estudiosos da obra deste muito elogiado escritor, ainda que, como muitos outros notáveis pensadores, não haja sido nenhum modelo de virtudes na sua vida privada.

Voltaire (1694-1778) ficou célebre como filósofo, prolífico escritor de fino recorte, mas, para muitos, sobretudo como acerbo crítico da Igreja. Foi um dos mais destacados precursores das fervilhantes ideias inovadoras que haveriam de explodir, no final do século XVIII, no turbilhão da Revolução Francesa, de que, em catadupa, sairia um dos mais controversos caudais de benefícios e de tragédias que a Humanidade já conheceu.

Por me parecer muito sugestivo, transcrevo aqui as últimas passagens deste conto a todos os títulos interessante :

Extracto de Candide, de Voltaire :

………………………………………………………………………………….

Vous devez avoir, dit Candide au Turc, une vaste et magnifique terre ?

- Je n’ai que vingt arpents, répondit le Turc ; je les cultive avec mes enfants; le travail éloigne de nous trois grands maux, l’ennui, le vice, et le besoin.
………………………………………………………………………………………………

Vous savez..... Je sais aussi, dit Candide, qu’il faut cultiver notre jardin.

Vous avez raison, dit Pangloss; car, quand l’homme fut mis dans le jardin d’Éden, il y fut mis _ut operaretur eum_, pour qu’il travaillât; ce qui prouve que l’homme n’est pas né pour le repos.
Travaillons sans raisonner, dit Martin, c’est le seul moyen de rendre la vie supportable.

Toute la petite société entra dans ce louable dessein; chacun se mit à exercer ses talents. La petite terre rapporta beaucoup.

Cunégonde était, à la vérité, bien laide; mais elle devint une excellente pâtissière; Paquette broda; la vieille eut soin du linge.

Il n’y eut pas jusqu’à frère Giroflée qui ne rendît service; il fut un très bon menuisier, et même devint honnête homme: et Pangloss disait quelquefois à Candide :

Tous les événements sont enchaînés dans le meilleur des mondes possibles; car enfin si vous n’aviez pas été chassé d’un beau château à grands coups de pied dans le derrière pour l’amour de mademoiselle Cunégonde, si vous n’aviez pas été mis à l’inquisition, si vous n’aviez pas couru l’Amérique à pied, si vous n’aviez pas donné un bon coup d’épée au baron, si vous n’aviez pas perdu tous vos moutons du bon pays d’Eldorado, vous ne mangeriez pas ici des cédrats confits et des pistaches.

Cela est bien dit, répondit Candide, mais il faut cultiver notre jardin. (Fim da transcrição e do conto).

------------------------------------------------------------------------------------------------

Na essência, a ideia-força que ressalta das considerações do Turco, segundo as quais o trabalho nos livra de três grandes males ou flagelos : o tédio, o vício ou os vícios e a pobreza ou a miséria, não andará muito distante da que emana da inscrição Arbeit macht Frei/ O Trabalho Liberta, que os Nazis colocavam nos portões dos seus Campos de Concentração, que eram, na verdade, Campos de Morte, para os infelizes que lá caíam.

Porém, esta associação, em mais de 60 anos passados desde o fim da 2ª Guerra Mundial, nunca terá sido feita pelo imenso número de analisadores, comentadores e apreciadores de Voltaire, em grande parte, como sabemos, oriundos daquela faixa social, tradicionalmente esquerdizante, tida quase sempre por intelectual bem-pensante, hoje, mais do que nunca, empertigadamente assumida como porta-voz do chamado pensamento político correcto, maravilha insuportável da actual modernidade.

Dada a proximidade, segundo creio, das aludidas mensagens, cabe perguntar : a que se deverá este aparente lapso de tantos ultra-laboriosos e iluminados cérebros, que, sem cessar, sobre tudo reflectem e emitem sentença ?

Deixo, pois, à consideração filosófica dos meus hipotéticos leitores esta inquietante questão que subitamente aflorou na minha mente.

AV_Lisboa, 09 de Setembro de 2007

This page is powered by Blogger. Isn't yours?